
Já não temo páginas em branco, mas ainda estou aprendendo a percorrê-las. Escrevo esta pequena carta enquanto meu país é tomado por incêndios criminosos que atingem biomas vitais às vidas; o Governo, atrelado a um desenvolvimentismo que faria Vargas sorrir e preso a uma política de conciliação com setores ecocidas, age a passos lentos em dissociação à urgência do fogo. Os cenários de devastação que pontuaram as manchetes nos últimos meses se intensificaram nas últimas semanas, período em que não consegui desviar os olhos ou os pensamentos das chamas. No ano em que tomei coragem para assumir minhas performances e desenhos como ofício e pesquisa, a velha bigorna que atormentou muitos outros diante de mim me julgou responsável o suficiente para se jogar sobre minha cabeça: “que papel a minha arte pode assumir nesse cenário?”
Uma ciranda no fim do mundo, nunca um confronto
O bordão dos tempos da peste – “a arte salva” – me soa esquisito. Desenhar e dançar, para mim, não é como encontrar uma boia colorida, pronta para me segurar pelos braços num mar furioso. Na verdade, tudo isso vem num lugar de desassossego bom, capaz de me virar de cabeça pra baixo e mudar o que vejo na vida que me cerca. Não como um respiro, mas como uma quietude flamejante, esta que sentimos antes de dar um primeiro passo.
Não se trata de demandar que a arte “diga algo” ou seja “útil” – até porque, os conceitos contemporâneos de utilidade estão profundamente alinhados com a soberania do capital, então mandemos essa discussão para as cucuias, no momento.
Trata-se de contestar essa postura desconjuntada (e anacronicamente tropicalista) que insiste em montar uma ciranda no fim do mundo, nunca um confronto. Os olhos nos céus, em busca da esperança de um futuro ideal, nunca o potencial efervescente da lama.

Ficar com o problema
Já não temo páginas em branco, mas como caminhar de maneira responsável sobre essa página hostil? Eu precisava de um oráculo, um ponto de partida, um dispositivo. E o estranho sorriso de Donna Haraway, bem como a sua inclinação a pensar com pombos, aranhas, cães e insubmissas autoras de ficção científica, me foram suficientes para a função.
Você pode montar a sua própria trajetória de descobertas em torno da autora. Vou me resumir à proposta que me pegou pela ponta do nariz: Haraway, conhecida por seu trabalho no “Manifesto Ciborgue” (1985), é autora de “Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno” (2016). Enquanto as prateleiras e feeds são tomados por discursos escapistas ou esperançosos, Haraway, essa criatura da lama, nos mobiliza com a responsabilidade: fique e veja.
Ficar e ver é, no despreparo, um processo desgraçado. O fluxo das notícias e o grito multiespécies de socorro tornam evidentes a nossa pequeneza, essa conclusão inaceitável para nós, que acreditamos poder tudo. Minha analista usufruiu dos benefícios do serviço remoto ao não precisar lidar com toda a minha descarga de meleca quando chorei dizendo que “nada mais me importa, tudo é tão bobo, o que fazer nessa tragédia?”
Somos mesmo muito pequenos, os bebês mais frágeis e prepotentes do reino animal. Mas, fazendo eco e uma pequena adição ao conselho bonito da pintora Paula Siebra ao Clareira, como proteger a sensibilidade para agir nesse estado permanente de choque?
A crise da imaginação não afeta somente os setores conservadores ou as juventudes. Mark Fisher bem disse que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” e, aqui estamos, velando nossos futuros perdidos enquanto entoamos as clássicas de Gal Gosta. Nós precisamos dos territórios que nos instigam a imaginação e a experimentação.
E aqui entram a arte e a literatura. Onde mais poderíamos exercitar essa habilidade de ver que um pente não é só um pente? (À luminosa Bela Frigui citando Manoel de Barros durante nossos ateliers, muito obrigada!)
Desinventar objetos. O pente, por exemplo
Dar ao pente funções de não pentear
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia
Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
Manoel de Barros, Uma didática da invenção.
Em suma, em que outro território, vamos aprender a criar mundos outros? Em que outro espaço encontraremos estórias que nos ajudem a contar outras estórias? Em que outro lugar vamos desaprender os conceitos que nos prendem a um modo de vida predatório?
Acredito que é na arte que deslocamos sentidos, renovamos percepções e contestamos a ordem estabelecida. É na arte que encontramos recursos para vislumbrar outros meios – mais justos para todas as espécies.
Se precisamos ficar com o problema, é na arte que aprendemos a percebê-lo.
Atentemos os sentidos: temos um mundo inteiro por ouvir.

Mapa do Chthuluceno
Referências de artistas e pesquisadores que criam com espécies companheiras.
Izabella Coelho e Ambuá produziram as obras que ilustram esta edição. Elus sacodem a santidade dos museus e propõem instalações comestíveis, pautando a agroecologia e a potência de narrativas anticapitalistas.
Fiona Apple, que fez aniversário no dia 13 de setembro, convidou os seus cães Mercy, Maddie, Leo e Alfie para o irretocável “Fetch the Bolt Cutters”. Se não ouviu, ouça, e se ouviu, vale ouvir de novo — e de novo e de novo.
Comida Saudável para Todos faz, no Jornal do Veneno e em suas redes sociais, uma cobertura incrível dos incêndios que assolam os biomas brasileiros.
Sabrina Fernandes aborda o Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) das lutas palestinas como exemplo para nossas políticas de transição.
Tema da próxima edição: ficção para desficcionalizar o real.